quarta-feira, 13 de novembro de 2013

3º TRABALHO
A CORÇA DOS CASCOS DE
BRONZE E CHIFRES DE OURO
O Mito

Na longínqua região do Monte Cirineu, fora dos domínios do rei Euristeu, corria pela pastaria verdejante, cinco lindas corças. A extensa pastaria com lagos de límpidas águas e lindos bosques, circundava o Monte Cirineu, onde, lá no alto, guardado por arbustos, ficava o Templo de Ártemis, a amada filha de Zeus, irmã gêmea do deus Apolo, deusa da Caça e protetora dos caçadores. Naqueles lindos bosques, costumava recolher-se a linda deusa: a banhar-se nas límpidas águas dos lagos ali existentes e a brincar, descontraída, com as belas ninfas, após suas longínquas viagens através do espaço sideral, em frequentes visitas aos seus imensos rebanhos, a sua criação, espalhados pelos quatro cantos da Terra.

Munida sempre do arco, da flecha e de sua lança, símbolos de seus atributos como deusa da Caça, saía sempre ao romper das madrugadas, voltando antes do pôr-do-sol. Rompia, veloz como um raio, o sideral espaço no seu lindo carro puxado por quatro das cinco corças que tinham como pastagem a extensa e bela região do Monte Cirineu. A quinta corça era o animal da maior estimação da deusa. Enquanto Ártemis voava no seu lindo carro, através do espaço, puxado pelas quatro corças, a quinta corça, corria, linda e veloz, pelas pastarias verdejantes das imensas possessões da deusa. Esta corça era diferente de todas as outras. Possuía ela os cascos de bronze – que nunca se gastavam em sua veloz carreira – e os seus chifres eram de ouro. O belo animal esperava, sempre, Ártemis no seu retorno diário e corria para o colo da deusa, tão logo esta chegava de suas costumeiras viagens.

A deusa Hera, lá do Olimpo, vendo que Hércules vai se saindo bem nos trabalhos que exigem um maior esforço físico, insufla o rei Euristeu a impor a Hércules um trabalho que necessite o uso de mais argúcia. Põe nos pensamentos de Euristeu mandar Hércules buscar a corça dos chifres de ouro. Euristeu, assim insuflado, manda chamar Hércules. Este se apresenta em palácio e o Rei ordena-lhe:

- Vá pegar uma corça que pasta, livre, na região do Monte Cirineu. Ela é única! Tem os cascos de bronze e os chifres de ouro. Eu a quero para colocá-la nos meus jardins. Pegue-a viva!

Hércules não discute. Sai do palácio real sem grandes preocupações quanto a este Trabalho. Vai pensando: para quem matou o tremendo leão da Nemeia, venceu a perigosa hidra de Lerna com suas nove cabeças, tendo oito que renasciam duplicadas quando decepadas, além de possuir uma cabeça imortal; para um exímio caçador como ele, pegar essa tal corça era “café pequeno”. Só não sabia Hércules nem Euristeu lhe dissera – porque também não sabia – que aquela corça, era o animal da maior estimação da, nada mais, nada menos, do que a respeitadíssima, temidíssima – porque muito autoritária –deusa Ártemis, acostumada a enfrentar, de maneira destemida, os mais ferozes animais que povoam a Terra.

Nesta “santa” ignorância parte Hércules, munido de seu arco e muitas flechas na aljava, com sua inseparável clava, para as longínquas paragens do Monte Cirineu, onde, nas verdejantes pastagens, corria como a brisa – porém mais veloz – a linda corça dos cascos de bronze e chifres de ouro da poderosa deusa Ártemis. Chega Hércules na região do Monte Cirineu e percorre a imensa pradaria sem, contudo, encontrar a ágil corça. Anda bastante tempo e rasteja com a sua experiência de exímio caçador, vestígios do arisco animal. Um dia, após muita procura, avista, ao longe, por detrás de uns arbustos, a procurada corça. Da distância em que estava nada de anormal notou. Nem mesmo o brilhar dos chifres de outro, no reflexo do sol. Com enorme cuidado para não ser percebido, infiltra-se por entre os arbustos na direção do animal.

Um forte tinir de metal soa em seus ouvidos e com a velocidade de um raio, a corça desaparece. Ela havia pressentido a presença de Hércules e nos seus velozes e colossais saltos, o bater dos cascos de bronze nas pedras do chão, geraram os sons que surpreenderam Hércules. Este, passado a surpresa, retorna à sua faina de localização da corça, agora com redobrado cuidado, pois sentira, neste primeiro contato, tratar-e de um animal fora do comum. Volta a rastejá-la e encontra novas pistas nas pegadas deixadas na terra fofa próxima a um lago. Segue as pegadas e novamente avista o animal lá distante. Usando sua experiência de caçador, procura colocar-se contra o vento para que a corça com o seu faro não sinta a presença dele e fuja como fez da vez anterior. Escondido entre os arbustos, sempre contra ao vento, vai se deslocando lentamente na direção do animal. Mas a corça percebe sua aproximação e sai em veloz e louca disparada para longe dali. Hércules pacientemente volta a procurá-la e consegue localizá-la. Arma então um estratagema para encurralá-la, mas, novamente a corça se livra do cerco. E assim, muitas vezes. Cada vez que Hércules se aproxima, a corça escapa veloz.

Hércules descobre existir um lago e atrás dele um estreitamento da pastaria, um lugar ideal para um cerco ao animal. E a corça, em louca disparada, dirige - se para lá. Hércules ocupa uma posição estratégica e, fechando o cerco, consegue encurralá-la, numa certa distância. A corça, como se percebesse a intenção de Hércules, retrocede, veloz, para furar o cerco. Num colossal salto passa quase por cima de Hércules. Este, rápido, atira-lhe uma flecha que vai cravar-se em uma das patinhas da corça que cai. Hércules corre célere para o animalzinho e o toma nos braços. E para, num êxtase, deslumbrado com a beleza da corça! Absorto, fica olhando, pasmo, para o animal que se debate em seu colo, sangrando. Então Hércules arrepende-se profundamente de tê-lo ferido. Seu deslumbramento, entretanto, é quebrado por uma potente voz de indignação que ressoa pelos ares e espoca seus ouvidos:

- Como ousaste, mortal, ferir o meu animal favorito?!

Era a voz tonitruante da deusa Ártemis que de lá dos espaços distantes, no seu carro veloz, vira a cena e grita para Hércules. Como se tivesse recebido uma forte descarga elétrica, Hércules desperta do seu êxtase e apavorado descobre que a corça tem uma dona e que essa dona é a uma deusa! Fica, então, desesperado! Matar o leão da Nemeia, vencer a hidra de Lerna, tudo bem. Mas ferir um animal favorito de uma deusa, era meter-se numa bruta enrascada! Com o animal debatendo-se no colo, ele não sabe o que fazer. Se puxasse a seta, poderia dilacerar – ainda mais – a patinha da corça. Morto de medo de aumentar o ferimento, bem devagarinho. Com muito cuidado ele vai aos poucos tirando a flecha da patinha ensanguentada da corça. Mal acabou de retirar a flecha, desce do seu carro, em sua frente, furiosa, a deusa Ártemis. Exasperada, grita para Hércules:

- Quem és tu, ó mortal?! Ó mortal?! Quem és tu para ousares macular, ferir um animal de estimação de uma deusa?!

Hércules emudece. Fica estático. Parado, em pé, com a corça nos braços. E chora, perante a deusa.

- Que tu sofras as dores que ela está sentindo! – Diz-lhe furiosa, a deusa Ártemis, e ordena:

- Ponha-a no meu carro!

E Hércules, atônito, fica sem saber o que fazer. Tem que cumprir o trabalho levando a corça para Euristeu. A deusa, dona da corça, furiosa á sua frente, ordenando-lhe rispidamente, que ele a coloque no carro dela! Fica Hércules por um rápido instante, indeciso, não sabendo que atitude tomar. Num enorme esforço procura aquietar a mente e buscar o discernimento. E, então, coloca a corça no carro da deusa. E Ártemis com o seu carro puxado pelas quatro corças, desaparece, rápida, no espaço, levando consigo a sua linda corça dos chifres de ouro.
Hércules sentado na grama do pasto, medita no que deve fazer. Lembra-se da ordem de Euristeu e resolve voltar a Micenas para prestar contas do seu Trabalho ao Rei. Lá chegando vai a palácio. Apresenta-se a Euristeu, e diz:

- Você mentiu! A corça não era livre como você disse. A corça não é minha! A corça não é sua! Ela tem uma dona que é a deusa Ártemis e por direito lhe pertence. Eu a peguei viva, como você mandou. Cumpri o Trabalho. Mas a entreguei à sua verdadeira dona.

Euristeu diante da verdade que lhe foi dita e da informação de que a corça pertencia a Ártemis, tremeu-se logo de medo de represália da deusa e imediatamente concordou com Hércules. Este sai do palácio. Vai para o campo, para a pradaria, vai descansar, meditar, refletir, bem longe de Euristeu, sobre o que aprendera neste Trabalho e aguardar um novo chamamento.


Simbolismos e Ensinamentos

Todos os que se iniciam no aspirantado da iluminação espiritual quase sempre cometem os mesmos erros que Hércules cometeu, neste seu Trabalho. Os erros são, basicamente, dois: o primeiro é o da presunção. Para quem matou, com seus próprios recursos, o leão da Nemeia; venceu, com auxílio dos ensinamentos dos deuses – o seu Eu Superior – a hidra de Lerna; para quem, como ele, um exímio caçador, capturar uma indefesa corça era “café pequeno”, pensou, presunçosamente, Hércules. Menosprezou a tarefa – aparentemente – fácil – que lhe foi dada para cumprir. Fez pouco caso da missão recebida e nem sequer procurou, no recolhimento da meditação, da reflexão, o necessário discernimento para a realização do Trabalho. Ele foi presunçoso.

E quantas vezes nós não o somos? Quantas vezes - no dia a dia de nossas vidas - não nos esquecemos de que na realização de pequenas coisas, estão as oportunidades de aplicarmos, com humildade, os nossos melhores conhecimentos? Tarefas que, por nos parecerem, às vezes, insignificantes, pequenas, não nos empenhamos para realizá-las usando todo o nosso conhecimento e discernimento para executá-las com perfeição. As informações que ele buscou no Trabalho anterior – no leão da Nemeia – desta vez ele nem cogitou, foi diretamente para a distante pradaria pegar a corça. Quando a gente menospreza uma tarefa, um trabalho ou mesmo uma pessoa, a gente nem se dá à preocupação de perguntar, investigar, procurar saber. No caso de pessoa, procurar entender a razão pela qual ela agiu daquela maneira, quais os motivos que a levaram a cometer tal desacerto, tal engano. E se o interlocutor é uma pessoa de categoria social “considerada” mais baixa, dá-se logo uma resposta grosseira. Se é uma pequena tarefa para ser executada, improvisa-se logo uma solução para o trabalho ou o executamos mal. De maneira descuidada alinhavamos a “insignificante” tarefa. Isso acontece toda hora.

Sem a perniciosa presunção, teria, Hércules, refletido, pensado, meditado por que uma corça tão linda, “única” – como disse Euristeu – com os cascos de bronze e chifres de ouro, estaria pastando, livre, sem dono, numa pradaria distante? E, pensando, meditando, refletindo viria o discernimento e com ele a necessidade de informar-se, e informando-se saberia a quem pertencia a corça e – quem era a sua poderosa dona. Usaria, então, outros meios para consegui-la. Sem o discernimento, nem o seu próprio Eu Superior – a centelha divina que nós, seres humanos, possuímos - pôde ajudá-lo, como o ajudou no caso do leão da Nemeia – a voz que lhe disse baixinho para não usar as armas - e, na hidra de Lerna – com os ensinamentos dos deuses. É, portanto, a presunção, um perigoso inimigo de quase todos os noviços do aspirantado, porque eles começam a sentir a presença das forças divinas à sua volta, sentem-se, conscientemente, ajudados por energias emanadas de planos superiores e acham-se – equivocadamente – detentores de todos os conhecimentos, de todo o saber, como se tudo pudessem fazer. E assim agindo, assumem posturas anti-naturais, pedantes, e cometem toda espécie de desacertos. Não aprenderam ainda que somos ajudados pela Sabedoria do Cosmos quando nos entregamos, sem presunção, a piedosa contrição. E, assim, contritos e humildes, realizamos todas as nossas tarefas, desde as mais simples, porque “é da simplicidade das pequenas coisas que repousa a grandiosidade da perfeição.” É da partícula do átomo que se forma o Universo!

O segundo erro de muitos iniciantes do aspirantado da iluminação é o deslumbramento! De repente ele se sente tocado pelos fenômenos que ocorrem em sua volta e, deslumbrado e curioso (ao contrário do presunçoso que tudo já pensa saber e poder) ele quer, de uma hora para outra, sofregamente, de tudo saber e tudo aprender. Abandona o trabalho, deixa o emprego; exercitando um conceito errado de desapego esquece-se de sua vida prática e toma uma postura de asceta, contemplativa, distante de sua realidade. Deixa-se envolver por quantos lhe acenem com as mentirosas promessas de levá-lo aos planos divinos. Passa por quase todas as religiões - em nenhuma fica, porque em nenhuma delas encontra o que procura. Como Hércules, ele percorre todos os recantos da pradaria sem encontrar a corça dos cascos de bronze e chifres de ouro.

Passa, o deslumbrado aspirante, por todas as ordens esotéricas, apenas superficialmente, e delas sai sem maiores conhecimentos, porque, apressado, não teve tempo para absorvê-los em maior profundidade. Vai a sessões de espiritismo e, inicialmente se deslumbra com os fenômenos mediúnicos das manifestações de entidades astrais (13) (u’as mais, outras menos evoluídas, a depender dos subplanos astrais em que habitam), chamadas erroneamente de espíritos de Luz. Permanece aí o tempo bastante para descobrir que também ali não está o Deus que procura. Fascina-se pela magia, devora literatura de autores ditos magos e sonha em um dia também ser mago. E nessa ansiosa busca de Deus, deturpa, sem saber, as mais puras manifestações divinas que passam por ele deixando as vibrações (os sons dos cascos de bronze da corça dos chifres de ouro no chão do caminho) e ele não consegue ver.

Querendo cercar a corça dos cascos de bronze e chifres de ouro por todos os lados, tenta encurralá-la nos estreitos espaços de suas próprias fantasias. E assim pensando – ou sem pensar – vai, pela vida afora, contribuindo para a deturpação das manifestações divinas, ferindo a corça dos cascos de bronze e chifres de ouro do próprio Deus que ele tanto procura e que vai encontrar no sofrimento e na dor (da corça ferida). E maravilhado com tanta beleza, arrependido dos erros que cometera, (ferir a corça) tenta apagar as marcas deixadas de sua insensatez, tirando cuidadosamente a seta do ferimento. Ouve a voz dos deuses (de Ártemis) mas deturpada pela reprovação dos atos por ele cometidos. Diante da presença divina (a própria deusa) chora, humildemente arrependido, porque identifica ali, naquele instante, o Deus que sempre procurou por toda parte, e que está nele mesmo, em seus braços: a corça dos chifres de ouro, ferida mas amada. Mesmo errando, (e todos nós erramos sempre, como Hércules), se reconhecermos os erros cometidos e, humildando-nos, suplicarmos a misericórdia divina, beberemos a bem-aventurança do perdão.

Hércules optou por entregar a corça dos chifres de ouro à deusa, sua dona, porque: “do Sagrado é, o que é Sagrado”. “Dai a Deus o que é de Deus”. A corça dos chifres de ouro era sagrada. Era da deusa Ártemis, vivia nas suas pradarias, nos seus domínios, portanto. E a nenhum ser humano é permitido – não tem ele direito nem poder de, pela violência (flechada) - tirar o que é divino das verdejantes pradarias de Deus, e que ali está para a adoração de todos – e levá-lo para os jardins (satisfação do ego) de qualquer poder terreno (rei Euristeu).
A mais sensata atitude de quem aspira à iluminação espiritual é a do equilíbrio – o Caminho do Meio, dos budistas – entre a presunção e o deslumbramento. É, aprendendo a usar o discernimento, meditando, refletindo, saber dosar o conhecimento que aos poucos e gradualmente vá adquirindo e, humildemente, aplicá-los sem afetação ou pedantismo, o: “homem, conhece-te a ti mesmo”. Exercitar um desinteressado trabalho de solidariedade humana e cultivar um sentimento de profundo amor ao próximo. Deve, o buscador, proteger-se a todo custo, aplicando, sempre, o discernimento e usando os conhecimentos já adquiridos contra as promessas fantasiosas – biombo a esconder os mais sórdidos interesses materiais – de quase todas as religiões que atualmente se espalham pelo mundo e que manipulam a ideia de Deus como se fosse sua propriedade e a encarceram nas enferrujadas correntes de seus dogmas; precaver-se de atuantes e agressivos movimentos de grupos ditos religiosos que se alastram por toda parte; de entidades ditas filosóficas que surgem de todos os lados com a intenção de descobrir, dizem, - as origens do homem e de Deus! Todas – ou quase todas – motivadas pelo desejo material do poder, do mando, do domínio sobre a natureza humana, contrariando o livre-arbítrio, um dom emanado de Deus.


Conhecendo-se a si mesmo vai o ser humano diretamente ao templo da Deusa (no alto do Monte Cirineu, guardado por lindos bosques) onde a corça dos chifres de ouro repousa tranquila, todas as noites, nos braços de sua dona a deusa Ártemis, nos retornos diários de suas viagens pelos confins do Universo. Sem dor nem sofrimento, encontra ele o Deus que tanto procura. A centelha divina que Prometeu lhe jogou, é transmutada na Chama Trina do Fogo Sagrado da imortalidade. 

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